A Cebola do Shrek

(Read this post in English.)

É óbvio que a cebola não é, realmente, do Shrek. O fato é que a cebola já foi usada como ilustração na sociologia, psicologia, guias de auto-ajuda, e até para programar  computadores. E faz muito sentido: a cebola tem camadas, e, portanto, pode ser usada para descrever algo complexo ou estratificado. Eu chamo isto da cebola de Shrek porque Shrek fez com que isto fosse memorável para mim. Talvez você lembre da cena. O Burro tagarela está tentando convencer o Shrek de fazer algo digno do um ogro, e atacar diretamente o seu rival. Então o Shrek lhe explica a complexidade de ser um ogro:

Shrek: Pra sua informação, há mais do se imagina nos ogros.

Burro: Exemplo?

Shrek: Exemplo? Ok… Ah… Nós somos como cebolas.

[estende uma cebola para o Burro, que dá uma cheirada]

Burro: Fedem?

Shrek: Sim. Não!

Burro: Oh. Fazem você chorar.

Shrek: Não.

Burro: Oh, deixa eles no sol e eles ficam marrons e soltam aqueles cabelinhos…

Shrek: [descascando a cebola] Não! Camadas! As cebolas têm camadas, os ogros têm camadas. A cebola tem camadas, entendeu? Nós dois temos camadas.

Agora toda vez que penso em uma situação complexa que precisa ser examinada camada por camada, eu penso, “É a cebola do Shrek.” (Quem já fez aula de hermenêutica comigo sabe que é verdade.) E naturalmente, longo penso no Burro, dizendo, “Ah, vocês dois tem camadas. Oh. Sabe, nem todos gostam de cebolas. Que tal um bolo? Todo mundo adora bolo!” E, melhor ainda: “Sabe de outra coisa que todo mundo adora? Pavê!”

A minha mente funciona de um jeito muito estranho.

Mas porque estou falando da cebola do Shrek?

A nossa igreja tem feito uma série de mensagens recentemente sobre a suficiência das Escrituras, e o estudo trouxe à tona muitas coisas interessantes e reveladoras sobre pessoas e o seu entendimento da Bíblia. A mensagem central da série foi simples, mas ainda assim fundamental: Deus nos deu a verdade na Sua Palavra que é suficiente para a “vida e piedade” (2 Pe 1.3), e que é inspirada por Deus, portanto proveitosa para “ensino, repreensão, correção, e instrução em justiça”, com o propósito de fazer o cristão completo, e completamente capacitado para toda boa obra (2 Tm 3.16, 17). Obviamente, isto deveria ser uma verdade central na vida de qualquer cristão. Deus não criou o homem e o deixou para se virar, mas deu-lhe instruções suficientes de autoridade divina na Sua Palavra para que pudesse entender e viver neste mundo que Deus criou.

Permita-me um momento para uma explicação pessoal. Esta verdade é essencial para mim; é uma pressuposição fundamental que alicerça tudo que faço: ou a Bíblia é a absoluta Palavra de Deus, e portanto tem autoridade divina, ou é simplesmente mais uma grande coleção de literatura humana, tão valiosa quanto qualquer outra coisa que o homem já escreveu. Eu entendo o risco de basear toda a minha estrutura em uma verdade só, mas é um “risco” que corro com prazer. Sempre penso nas palavras maravilhosas de C.S. Lewis, “Eu acredito no cristianismo como acredito que o sol nasceu: não só porque o vejo, mas porque por ele vejo todas as outras coisas” (citado online, aparentemente de um artigo chamado (“A Teologia é Poesia?”, 1945). Ele falou do cristianismo como um todo, mas é óbvio, e até mais apropriado, dizer isto sobre as Escrituras. A Bíblia é o nosso sol espiritual, porque não só a vemos, mas por causa dela, vemos todas as outras coisas.

Então, quando eu arduamente compartilho esta verdade que para mim é tão básica e necessária, e escuto respostas que refletem uma ignorância completa das coisas mais básicas da Bíblia (como, por exemplo, onde se encontram os Evangelhos), ou histórias de experiências pessoais com Deus (que contrariam a Palavra de Deus), ou canja de galinha para alma (ou seja, aquelas historinhas bonitinhas e rasas), ou o que o autor Paul Tripp chama de uma leitura das Escrituras do “copiar e colar” (Instrumentos, p. 48), eu vejo que estou de cara com uma cebola do Shrek: reconheço que há muitas e muitas camadas para descascar antes que esta verdade atinja o cerne da cosmovisão destas pessoas.

Eu uso a palavra “ignorância” várias vezes neste post, então gostaria de explicar uma coisa sobre o termo. Eu não o uso como insulto, ou para ofender. Eu me lembro de ficar ofendido no segundo grau (ensino médio para vocês, mais jovens), em uma aula de química. Tinha feito um erro de cálculo muito óbvio, e falei, “É, eu sou burro mesmo.” O professor, prestativo, me corrigiu, “Você não é burro; é ignorante.” Ai! Essa doeu. Mas ele estava certíssimo. A minha ignorância–a falta de conhecimento sobre o assunto–havia levado ao erro de cálculo, que graças a Deus, não levou a uma explosão. Era aula de química, afinal. Descobrindo que você é ignorante sobre um assunto não deve ofendê-lo; deve incentivá-lo a querer saber mais.

Vamos começar com a camada da ignorância geral da Bíblia–pessoas que simplesmente não conhecem nada a Palavra de Deus. Não estou falando de crentes novos, mas de crentes estagnados. Entraram nessa, Deus sabe como (digo isto com todo respeito a Deus), e agora frequentam aos cultos e eventos da igreja sem base alguma. Sua dieta espiritual da Palavra consistente em beliscadinhas de coisas que ouviram ou leram; das migalhas que recebem aleatoriamente no dia a dia. Não discriminam o que consomem, e portanto sua saúde espiritual está em crise. Não podem nem ser protegidos pelos pastores do seu rebanho, pois são eles que visitam os lobos regularmente por conta própria. A esta camada de ignorância, você apresenta o conhecimento bíblico. Você enfatiza a leitura da Palavra de Deus.

A camada sai, revelando outra camada de ignorância: pessoas não sabem como ler a Bíblia. Vejam o que Paul Tripp diz:

Muitos cristãos simplesmente não entendem o que a Bíblia é. Muitos acham que ela é uma enciclopédia espiritual: o catálogo completo de Deus sobre os problemas humanos, associado á lista completa de respostas divinas. Se você abrir na página certa, poderá encontrar respostas para qualquer conflito. Uma variação mais sofisticada vê a Bíblia como um livro texto de teologia sistemática, um esboço de tópicos essenciais que devem ser dominados para viver e pensar da maneira de Deus. Nos dois casos, temos a tendência de oferecer uns aos outros, partes isoladas das Escrituras (um mandamento, um princípio, uma promessa) que parece se encaixar na necessidade do momento. Pensamos que ministrar a Palavra é um pouco mais que um sistema espiritual de copiar e colar. (Instrumentos, 48).

Ele continua, explicando que precisamos de uma visão completa das Escrituras, uma visão que compreende a inteireza da história da redenção de Deus e coloca os trechos e versículos dentro deste contexto. Pessoas presas na primeira camada (da ignorância geral), que estão imaginando por onde começar, vão se espantar com esta informação. “O quê? Eu tenho que ler a Bíblia toda?” Calma. Passo pequenos primeiro. Mas sim, eventualmente, você precisa ler tudo, sim. A beleza das Escrituras não deveria ser reduzida ao artesanato de uma feira hippie–uma coleção de frases bonitinhas bordadas em toalhas, pintadas em plaquinhas ou enviadas em emails para nos ajudar a sobreviver o cotidiano.  Deveria ser admirada na sua maravilhosa e coesa inteireza, com todas as suas conexões, como Monet, pintando uma obra em uma escala muito maior do que já trabalhava. De perto, vemos pontinhos e cores da verdade de Deus, mas assim que aprendemos mais, e damos alguns passos para trás, vemos a mão de um infinito Deus, todo sábio, todo poderoso, juntando coisas aparentemente aleatórias em um plano mestre épico e eterno que deve nos maravilhar. Esqueça o 3D. Coloque uns óculos onidimensionais e aprecie esta obra prima de Deus.

Eu poderia continuar descascando a cebola, mas não vou. Basta apenas dizer que há camadas de experiências pessoais que são valorizadas acima da verdade de Deus; camadas de informações falsas de pessoas bem-intencionadas e outras que querem nos enganar; camadas de perspectivas pessoais e reflexões egoístas e autocêntricas que cancelam aquilo que Deus está nos dizendo; camadas de preguiça e falta de disciplina. Estão aí, na minha vida e sua, e tem que ser descascadas para chegar ao cerne da nossa cosmovisão.

O bom de tudo isto é que funciona da mesma forma que a salvação. Na salvação, entendemos que por mais que descasquemos a cebola, nunca vamos retirar camadas suficientes para remover o que nos separa de Deus. É Deus que tem que penetrar todas elas, e nos transformar de dentro para fora, de mudar o coração. O resultado disto é que algumas camadas caem sozinhas, e outras se tornam mais fáceis de retirar. Quando se trata de conhecer a Palavra de Deus, a mudança não é diferente. Deus está, novamente, mirando os nossos corações. Sim, há muito para aprender sobre como ler e entender a Bíblia, mas você não pode errar começando assim: leia sua Bíblia. Aproxime-se dela com a atitude de querer aprender o que Deus tem para dizer para você, e não o que você quer ouvir Deus falar. Afinal, que melhor maneira há para cortar as camadas da cebola do que uma espada de dois gumes? (Hb 4.12)

______
Paul David Tripp: Instrumentos na Mãos do Redentor: Pessoas que Precisam Ser Transformadas Ajudando Pessoas que Precisam de Transformação. Ed. NUTRA, SP: 2009.

2 comentários sobre “A Cebola do Shrek

  1. Angela disse:
    Avatar de Angela

    Olá, achei seu blog por acaso…estava procurando frases do shrek e cai aqui. Q grande benção. Amei seu artigo e prometo voltar para ler outros…(assim q terminar minha busca pelas frases do Shrek rsrsrs)
    Muito inteligente e interessante sua analogia com as cebolas…não tinha pensado nisso, mas vou usar algum dia…posso?rs
    Se quiser, dê uma passadinha no meu.
    Grande Abraço,
    Na Paz,
    Angela

Deixar mensagem para Claudia Rejane Cancelar resposta

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.